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A Sorocabana e seus trabalhadores

 

Adalberto Coutinho de Araújo Neto*

 

            Neste mês comemoramos 130 anos de fundação da Estrada de Ferro Sorocabana (EFS) e tudo o que ela representou para o desenvolvimento de extensa região do interior paulista. Seu funcionamento e expansão contínua a partir de 1875 até 1937, deram forte impulso para o início do crescimento fabril de Sorocaba, o incremento do povoamento da chamada Zona da Alta Sorocabana e de sua produção agropecuária para consumo regional e na capital do estado. Embora a ferrovia tenha nascido para viabilizar a exportação de algodão da região em que Sorocaba se destacava como cidade comercial tradicional, essa função pouco pôde ser levada adiante, devido à crise que a forte concorrência norte americana trouxe para a exportação algodoeira regional, fato bastante destacado na produção historiográfica sobre o assunto.

            As histórias sobre a criação, construção, desenvolvimento econômico regional proporcionado pela EFS são bastante conhecidas e divulgadas em trabalhos de muitos autores. São exaltados os atos e o desprendimento dos empresários e dos “visionários” que serviram-na (e serviram-se dela em larga escala) em diversos momentos.

Há algum tempo, a história daqueles que fizeram as máquinas funcionarem e consertaram-nas, os trens percorrerem as linhas, que estenderam os trilhos e conservaram-nos transitáveis, começou a ser contada. Algumas ainda são histórias fragmentadas, contando a vida cotidiana de personagens cientes de sua importância no desempenho de funções que fizeram a grandeza da empresa e colaboraram com a criação de riquezas, possibilitando e realizando seu transporte. Outros, são estudos sistematizados sobre a disciplina do trabalho dentro da empresa e estudos das relações sociais com uma envergadura regional, apresentados como conclusões de projetos de pós-graduação nas universidades.

            Desde o início da construção e da operação da ferrovia, a maior parte de seus trabalhadores, segundo o que indicam os documentos preservados no Museu da Sorocabana e no Museu Histórico Sorocabano, era formada por nacionais, especialmente por trabalhadores provenientes dos municípios atendidos por ela.

Tendo por base as informações contidas nos Livros de Registro de Empregados conservados no Museu da Sorocabana, a participação dos estrangeiros, teve certa expressão, chegando nos dados referentes ao qüinqüênio de 1926 – 1930 (o que apresentou a maior quantidade de contratação de estrangeiros, na amostragem que fizemos), a aproximadamente 17,5% do total de trabalhadores contratados. Desses estrangeiros, a maioria era de portugueses, seguidos de austríacos e espanhóis, havendo ainda registro de alemães, italianos, turcos (provavelmente árabes), sírios, romenos etc. em menor número. Muitos eram contratados em grupos, o que sugere sua permanência em turmas de trabalho. Quase sempre, o imigrante ocupava a função de trabalhador, isto é, braçal na conservação da linha permanente e em alguns casos, como operários nas oficinas. Esses dados referem-se a um período em que boa parte das obras de expansão da ferrovia estavam concluídas, restando entretanto, uma de suas maiores realizações, o início da construção da linha Mairinque – Santos.

            Nacionais ou estrangeiros, provenientes do interior paulista ou de vários estados brasileiros, os ferroviários de todas as empresas sempre demonstraram orgulho profissional elevado. Sabiam de sua importância econômica regional, estadual e mesmo, nacional. Partilhavam essa consciência também com trabalhadores portuários. Sabiam que a economia brasileira era dependente da exportação de produtos como o café e da importação de grande quantidade de produtos industrializados. O transporte desses produtos para os portos ou deles para o interior do país, só poderia ser feito com certa eficiência pelas ferrovias.

Ao menos desde 1897, os ferroviários da Sorocabana começaram a criar entidades operárias destinadas ao seu auxílio. Inicialmente, eram entidades de ajuda ou socorro mútuo, classificadas como mutualistas. Tinham a função de servir como seguro saúde, já que mantinham médicos; como auxílio educacional, já que mantinham professores alfabetizadores; como auxílio funeral para seus sócios e principalmente, como previdência coletiva. Isso se dava porque não havia qualquer sistema social de saúde ou de previdência social destinado aos trabalhadores até o início dos anos 1920. A educação pública era limitadíssima, mal atingindo uma parcela da população. Foram criadas várias entidades, que sempre tiveram enorme dificuldade financeira para cumprir suas missões. 

Embora a remuneração dos ferroviários pudesse ser considerada uma das melhores dentro da classe operária de forma geral, as condições de trabalho e a exploração sofrida por esses trabalhadores também foi grande. Viveram às voltas com extensas jornadas de trabalho que, entre os maquinistas em 1914 – 19, chegavam a 16 horas diárias, defasagem salarial e insegurança no trabalho, com freqüentes acidentes e alguns fatais, como indicam os jornais da época.

Para fazer frente a esses problemas, precisaram organizar outros tipos de entidades, que teriam a partir de então, funções diversas das mutualistas então existentes. Seriam as uniões operárias e sociedades de resistência. Estas tinham como objetivo a representação e a defesa dos interesses coletivos de seus sócios, organizando manifestações e até greves parciais. Deveriam buscar acordos ou pressionar a Administração da empresa para que os fizessem. Para isso, denunciavam na imprensa operária e local seus problemas e buscavam intermediação de políticos e de autoridades, especialmente de delegados de polícia. No início do século XX, os delegados de polícia, além de exercerem suas funções em relação à segurança pública, muitas vezes eram requisitados para resolverem ou ajudarem a encontrar soluções para questões sociais e trabalhistas, entre outras.

Ao solicitarem ajuda a deputados etc. para a representação de suas reivindicações, os trabalhadores e, nesse caso, os ferroviários, tornavam-se “devedores de favores” para com os mesmos. Nem é preciso ressaltar, que essa situação tornava muitos líderes trabalhistas passíveis de manipulação por políticos ardilosos…

Como nem sempre essas intermediações eram suficientes para a resolução satisfatória de seus problemas, os trabalhadores apelavam para a luta de classes. Organizavam manifestações e deflagravam greves. Evidentemente, essas eram atitudes de risco, pois não havia qualquer direito de greve regulamentado e corriam por isso mesmo, o rico de severas punições e de repressão policial, resultando muitas vezes em prisões e demissões de trabalhadores. Algumas vezes, esses conflitos chegaram a produzir feridos.

As primeiras greves de vulto dos ferroviários da Sorocabana, envolvendo trabalhadores de Sorocaba, Mairinque, Piracicaba e Botucatu, foram as de 1914 e 1919. Ambas terminaram vitoriosas, sendo que pouco depois do encerramento da última, o Governo do Estado de São Paulo rompeu o contrato de arrendamento da Sorocabana com o consórcio internacional Sorocabana Railway, dirigido pelas empresas de Percival Farquhar associado ao banqueiro francês H. Legru, encampando-a até a criação da FEPASA, nos anos 60. Sob administração estatal desde o final de 1919, a Estrada de Ferro Sorocabana, como passou a denominar-se,  teve um de seus períodos mais prósperos.

Nas décadas iniciais do século XX, os anarquistas eram os principais militantes operários e os principais ativistas na imprensa proletária e organizadores das uniões e ligas operárias de resistência. Entretanto, não encontramos evidências de influências fortes da atuação dos libertários entre os ferroviários da Sorocabana. Prova disso, eram os envolvimentos desses trabalhadores com políticos e os pedidos de intermediação de seus conflitos durante a Greve de 1919, dirigidos aos políticos, como o deputado Luiz Pereira de Campos Vergueiro e ao Secretário da Agricultura do Estado de São Paulo. Os anarquistas desprezavam os políticos em geral.

Mesmo suas  entidades de resistência, como a União Geral dos Ferroviários, da qual encontramos notícias nas greves de 1914 e 1919, não duraram muito. Já em 1920, surgiam apelos para sua reorganização nas páginas do jornal anarquista paulistano A Plebe, conforme citou Maria de Fátima Salum Moreira em dissertação de Mestrado sobre os trabalhadores da Sorocabana.

Alguns grupos socialistas atuaram entre parte dos ferroviários, mas sem grande significação política e ideológica relevante. Depois da Revolução de 1930, com o decreto 19770 que regulamentava a sindicalização no Brasil durante a Era Vargas, surgiu no Estado, o Sindicato dos Ferroviários de São Paulo. Após a chamada Revolução Constitucionalista de 1932, ao final de dezembro desse ano, foi criado o Sindicato dos Ferroviários da Estrada de Ferro Sorocabana. Durante os oito anos de existência desse sindicato – foi fechado por ordem do Governo Vargas em 1940 – ele se tornou um dos maiores sindicatos da América do Sul em número de associados: cerca de onze mil trabalhadores sindicalizados.

            Esse sindicato conquistou uma grande força social, demonstrada na grande greve de 1934, a qual por quatro dias, paralisou grande parte do tráfego da ferrovia em Sorocaba, São Paulo, Assis, Botucatu, Itapetininga e Mairinque. Estiveram envolvidos alguns milhares de trabalhadores. A greve acabou com a vitória nominal dos ferroviários que tiveram suas reivindicações aceitas pela empresa e pelo governo do estado, mas não cumpridas até 1937, quando uma greve branca de mais de um mês semi paralisou as oficinas de Sorocaba, forçando finalmente o atendimento das reivindicações operárias pela empresa.

            A força social do sindicato acabou por se traduzir também em força política. Para a Constituinte de 1934, os ferroviários elegeram o Secretário de seu sindicato, o jovem Armando Avellanal Laydner como seu representante. Em seguida, Laydner foi eleito Presidente do Sindicato, trilhando uma conturbada e polêmica carreira trabalhista.

            Nesses anos da década de 1930, houve intensa disputa de força entre os sindicalistas e a Administração da EFS, especialmente no período em que Gaspar Ricardo Jr. foi Diretor da empresa. Ela estendeu-se entre os sindicalistas e trabalhadores ligados politicamente com a Administração e partidos políticos representantes dos empresários e latifundiários cafeicultores, como o Partido Republicano Paulista, Partido Democrático etc. Essa disputa se traduzia na concorrência por sócios entre o Sindicato dos Ferroviários da Estrada de Ferro Sorocabana – SFEFS – e entidades favoráveis à empresa, como o Centro Ideal Ferroviário, Centro dos Telegrafistas da Sorocabana, Associação Profissional dos Empregados da Sorocabana, sendo que esta última apresentou características integralistas e fascistizantes.

            Mesmo entre os sindicalistas, houve pesada disputa pela direção do SFEFS. Socialistas de influência tenentista de esquerda, comunistas e getulistas disputaram agressivamente entre si a direção do poderoso e rico sindicato. Cada grupo queria influenciar o enorme conjunto de trabalhadores conforme suas orientações políticas e ideológicas. Alguns contra o Governo Vargas e o integralismo, levando-os a participar da Aliança Nacional Libertadora e do PCB até 1935. Outros queriam-nos apoiadores de Getúlio. Os getulistas acabaram vencedores com a prisão e esfacelamento de seus opositores entre 1935 e 1937, início do Estado Novo.

            Além das lutas sociais, políticas e particularistas dentro do sindicato e com a empresa, através dessa organização, foram criadas escolas de alfabetização para crianças e adultos, escolas técnicas, consultórios médicos e odontológicos em cidades como Sorocaba, Assis, Botucatu e outras.

O conjunto dos ferroviários influenciou a política de vários municípios onde ele era socialmente importante. Alguns foram eleitos vereadores e em Sorocaba, o ferroviário comunista Alonso Gomes chegou perto de se eleger o Prefeito Municipal em 1947, contando com o apoio da forte e numerosa classe operária da cidade.

Hoje, passadas tantas décadas e mais de um século do início de sua luta por seus direitos e por uma sociedade mais justa, outras categorias profissionais se destacaram no movimento operário e muito de sua luta virou história. Nós ainda assistimos a luta descontínua e nem sempre conexa por uma sociedade mais justa e segura socialmente e pela preservação dos direitos trabalhistas conquistados, levadas a cabos por segmentos sociais nem sempre unidos.


 

* Adalberto Coutinho de Araújo Neto é mestrando em História pela USP. Sua pesquisa aborda o sindicalismo dos ferroviários a Sorocabana durante os anos 30.

 

 

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