Notas para a
História da Capoeira em Sorocaba (1850 – 1930)
Carlos
Carvalho Cavalheiro .
A notícia
mais antiga que se tem da capoeira na cidade de Sorocaba
é a edição do Código de Posturas da Câmara Municipal,
datado de 1850, e que trata, em seu artigo 151, da
proibição dessa luta. O enunciado do artigo é o
seguinte: “Toda a pessoa que nas praças, ruas, casas
públicas, ou em qualquer outro lugar tão bem público
practicar ou exercer o jogo denominado de Capoeiras ou
qualquer outro gênero de luta, sendo livre será preso
por dous dias, e pagará dous mil reis de multa, e sendo
captiva será preso, e entregue a seo senhor para o fazer
castigar naquela com vinte cinco açoites e quando não
faça sofrerá o escravo a mesma pena de dous dias de
prisão e dous mil réis de multa” . Desse texto legal se
depreende que os legisladores sorocabanos, que refletiam
a mentalidade da classe dominante, conheciam da
existência da capoeira e que a mesma era (ou poderia
ser) praticada por brancos e negros, homens livres e
escravos; não sendo, portanto, exclusividade de uma
classe específica. Outro aspecto importante é que a
prática da capoeira já estava relacionada com o aspecto
lúdico, eis que era conhecida como jogo, embora fosse
reconhecida como luta, conforme explicita o próprio
texto da lei: “...ou qualquer outro gênero de luta...”.
Também é interessante notar que a intenção de punir era
irrestrita (não obstante as punições aos homens livres
fossem mais brandas), o que pode significar que a
prática da capoeira era considerada nociva não somente
porque dela poderia se utilizar o escravo a fim de
combater a opressão. Desse modo é questionável até mesmo
a concepção de que a capoeira tenha servido
exclusivamente de luta do escravo pela sua libertação.
As leis municipais de Sorocaba repressivas à prática da
capoeira continuaram sendo editadas nas Posturas
Municipais durante as décadas subseqüentes. Em 1865 o
tópico referente à proibição da capoeira figurou no
artigo 127: “Toda e qualquer pessoa que em praças, ruas,
ou outro qualquer lugar exercer o jogo denominado
capoeiras, ou qualquer outra luta, será multado em 4$ e
dois dias de prisão ”. O texto mais sucinto e genérico
não discrimina os participantes do jogo da capoeira, nem
mesmo distingue a penalização, permanecendo, no entanto,
a concepção da prática como jogo. Em 1871, o artigo 73
do Código de Posturas da Cidade de Sorocaba apresenta o
seguinte texto: “Jogar capoeiras ou qualquer genero de
luta em publico: penas, 4$ de multa e 2 dias de prisão
”. Já em 1882 o termo “capoeiras” deixa de figurar no
texto legal: “Art. 72. É prohibido jogar pelas ruas e
lugares públicos qualquer espécie de jogos ou luta, os
infractores incorrerão na multa de vinte mil réis e
cinco dias de prisão”. A imprensa sorocabana do século
XIX registrou inúmeros eventos relativos a valentões e
desordeiros, algumas evidências a lutas, sem que
houvesse, entretanto, uma descrição clara desses eventos
e que indicasse nomes de capoeiristas. Uma notícia
interessante, colhida no Diário de Sorocaba, em 1887,
diz: CARTEIRA DA POLÍCIA Á ordem do sr. delegado de
polícia, foi a 16 do corrente recolhido à cadeia João de
Almeida, vulgo Brizolla, por provocar desordens. —Á
mesma ordem, no mesmo dia e pelo mesmo motivo foi
recolhido o preto Antônio José da Silva, que trouxe mais
aggravante de, no corredor do mosteiro de S. Bento fazer
um grande rolo. Ahi está no que dão os valentões . A
palavra rolo, que os dicionários atuais apresentam como
sendo sinônimo de confusão ou perturbação da ordem, era,
no século XIX, comumente associada a tumultos provocados
pelos capoeiras ou por suas maltas. Artur Azevedo, na
opereta “O Barão de Pituaçu”, narra a conversa de um
capoeira: JOSÉ - Não é partido político, não sinhô. Como
político, eu sou republicano. É partido de capoeirage.
Eu sou guaiamu. BERMUDES - Tu é o quê, moleque do diabo?
JOSÉ - Guaiamu, legítimo guaiamu, de princípios. Esse
partido é a facção mais adiantada da flor da gente.
Quando houver rolo, hei de convidar o Sinhô Bermudes.
BERMUDES - Apois. JOSÉ. - Verá como eu sei entrar
bonito. (Fazendo uns passes de capoeira.) BERMUDES - Pra
lá, moleque! A mesma conotação parece ter a palavra rolo
em Pernambuco, no século XIX, segundo a informação de
Mário Sette: Acompanhando o desfile das bandas musicais
do Recife desde os primeiros anos da segunda metade do
século XIX, o nosso capoeira era, no dizer de Mário
Sette, figura obrigatória à frente do conjunto
"gingando, piruteando, manobrando cacetes e exibindo
navalhas. Faziam passos complicados, dirigiam pilhérias,
soltavam assobios agudíssimos, iam de provocação em
provocação até que o rolo explodia correndo sangue e
ficando os defuntos na rua". (RECIFE – PERNAMBUCO,
2004).
No começo
do século XX as notícias sobre desordeiros e
indisciplinados (neste último caso, soldados – das armas
ou da polícia), armados de navalhas é constante. A
navalha, segundo Melo de Morais Filho, era uma das armas
preferidas pelos capoeiristas. A navalha e um cacete,
que nunca excede de cinquenta centímetros, prêso ao
pulso por uma fina corda de linho, eram-lhe as armas
prediletas, nunca fazendo uso das de fogo . Dentre as
notícias de portadores de navalha, como arma, há a de um
soldado “indisciplinado” que foi preso em Sorocaba. Eis
a notícia: Indisciplinado Hontem, pelas 4 e 45 da tarde
o praça do destacamento local de nome Francisco Cândido
dos Santos, n. 111, da 4ª Companhia do 3. batalhão,
sendo reprehendido pelo Commandante, revoltou-se contra
este e, puchando por uma navalha, desafiou a todos que o
prendessem. O Commandante, então, ordenou sua prisão o
que foi conseguido a muito custo. O soldado Marcos
Antônio Moreira foi ferido com uma navalhada pelo
soldado indisciplinado. O sr. dr. Delegado fez lavrar
auto de prisão em flagrante e vae instaurar o competente
processo . Na década de 1920 as notícias sobre a
capoeira em Sorocaba aparecem com mais clareza,
informando, com alguns detalhes, sobre a existência do
jogo e da prática dessa luta. Uma das publicações nos
jornais sorocabanos alerta para a existência de um
barbeiro no início do século XX, cujo salão estava
localizado na rua Direita (hoje Boulevard Dr.
Braguinha), e que seria um “capoeira ‘desconjuntado’”. É
esta a nota: MEUS REPAROS Assisti aos festejos do 13 de
Maio. Estiveram assim... Parabéns ao Daniel de Moraes, a
quem se deve o não ter ficado “em branco”, a data. Vendo
passar os manifestantes, conduzidos pela palavra do
Ramiro Parreira, vieram-me á mente scenas dos 13 de Maio
de alguns annos atraz, uns 20 talvez, época em que
tínhamos aqui diversos oradores fogósos entre os homens
de côr. Destes o mais enthusiasmado e verborrhagico era
o popular Benedicto Gostoso, mulato escuro, physionomia
viva, cabello encaracolado e repartido “de banda”,
capoeira “desconjuntado” e barbeiro de profissão. Era
proprietário de um salão alli na rua Direita onde hoje
se ergue um sobradinho, e á porta lia-se em um cartaz
dom letras enormes: SALÃO DO NORTE THESOURA SEM PONTA
NAVALHA SEM CORTE Mas se o Gostoso era hábil no
desbastar uma gaforinha, os seus maiores êxitos eram
numa tribuna popular a 13 de Maio. Ante a multidão ávida
dos seus arroubos oratórios, tomava attitudes
empolgantes e “soltava o verbo”: “Os escravos, meus
senhores, vinham para o Brasil em grandes
‘trasatraticos’”. Mais adeante: “O dr. Antônio Bento,
senhores, era um homem tão importante, mas tão
importante mesmo, que nem devia ser “doutor” mas sim
‘coronel da Guarda Nacional’”. E por ahi seguia. K.D.T.
O
articulista acima, que assina por iniciais, reportou-se
a fato ocorrido cerca de 20 anos antes, o que nos remete
a data aproximada de 1907. Benedicto Gostoso era
residente e estabelecido em Sorocaba. É provável que
outros capoeiristas tenham sido seus contemporâneos
nessa mesma cidade. Em 1914 é veiculada na imprensa
sorocabana uma nota ligando a capoeira com a prática de
desordens, ou, em outras palavras, a capoeira como
prática comum de desordeiros: Notas policiaes (...)
Foram presos hoje as 10 ½ por estarem promovendo graves
desordem na Rua do Votorantim, os incorrigíveis
valientes, Olympio Monteiro e Antônio Francisco da Silva
(vulgo Grão de Bico) sendo que este armado de uma enorme
pernambucana tentou ferir o primeiro. Mas Olympio num
zig-zag de verdadeiro capoeira soube desviar os golpes
contra elle dirigidos e em sua defesa descascou no
“purungo” do “Grão de Bico” a cacetadas.
Ainda
sobre a década de 1920 mais duas notícias da imprensa
escrita autorizam a afirmação da inquestionável
existência de capoeiras em Sorocaba. Uma delas, trata de
um sutil comentário do jornalista acerca de fato
policial de ordem doméstica: FACTOS POLICIAIS NO BOM
JESUS Jovita da Silva levou á autoridade do districto,
queixa seu marido, que a esmurra. Jovita declarou á
autoridade que, por sua vez, enfrenta o marido,
passando-lhe rasteiras. Se é assim, não há de que
zangar-se a Jovita, que se diverte em capoeiragem com o
inexperto marido...
Mesmo que
a própria nota não afirme a prática da capoeira, antes
condiciona o comentário à informação prestada pela
queixosa; o texto serve para demonstrar que, ao menos no
senso comum, em Sorocaba existia uma vaga noção do que
seria a capoeira: uma luta (usada como defesa, talvez),
em que se utiliza a habilidade de golpes de perna,
especialmente a rasteira. A outra notícia é mais
esclarecedora, fornecendo alguns outros dados, a
despeito de ter redação parcimoniosa:
Delegacia
Regional BRINCADEIRA DESASTRADA No páteo da estação
Sorocabana os operários Joaquim Diniz Costa e Orlando di
Fogni brincavam de “capoeira”, cada qual empunhando sua
faca, quando por uma rasteira errada ambos cahiram,
ferindo se também cada qual com sua faca. A polícia teve
conhecimento do facto.
Dessa
notícia conclui-se que a capoeira em Sorocaba era uma
luta associada à disputa de dois oponentes (por
inferência, não havia disputa coletiva – um grupo contra
outro ou porfia entre duplas, trios etc...). O fato de
ser um desafio de habilidades e não uma desavença é o
que se depreende do termo “brincadeira”, utilizado pelo
redator da notícia. Também se observa que o jogo da
capoeira aparentemente não era acompanhado por música. O
uso de golpes de pés, como a rasteira, é outra
informação presente, bem como o fato de estar sendo a
capoeira brincada por operários, um dos quais,
provavelmente, de origem italiana. A preferência das
classes populares pela capoeira é reconhecida pelo
Mestre Pastinha: Não vai muito longe o tempo em que a
Capoeira sofria séria repressão por parte das
autoridades que não visavam, evidentemente, terminar com
a Capoeira, mas, evitar que indivíduos de mau caráter
dela se valessem para a prática de agressões e
desordens, pois, o aprendizado da capoeira congregava as
classes mais humildes do povo. A partir do surgimento de
novos documentos, de outras informações, a história da
capoeira em Sorocaba começa a tomar forma e apontar para
outros horizontes. Fugindo da debilidade das discussões
regionalistas, esses fatos contribuem para a compreensão
do etos e das relações sociais e étnicas que se
desenvolveram na cidade de Sorocaba, além de fornecer
elementos interessantes para a própria história da
capoeira. A capoeira deve ser estudada e entendida como
um fenômeno antropológico, o qual só foi gestado e
evoluiu por uma necessidade humana conjugada com o tempo
e o espaço. Assim, entender a existência da capoeira num
local é compreender a vasta complexidade das etnias que
contribuíram para a sua formação, a expressão
ritualística do gestual – tão próprio das tribos bantus
– que caracteriza uma procura por uma identidade; a
busca pela perfeição dos movimentos como forma de
destaque e status social (o capoeira acaba ganhando a
sua fama através das suas habilidades demonstradas e
provadas na roda de capoeira); a exclusão social que
forçou as classes sociais mais baixas a buscarem
divertimentos – como a capoeira – por não ter acesso a
outras formas de lazer... A aparente falta de uma
sistemática perseguição policial, durante a República
Velha, ao contrário do que se deu em outras localidades,
sobretudo no Rio de Janeiro, demonstra certa tolerância
com esse costume. Porém, durante o Império a iniciativa
de combater o exercício da capoeira em Sorocaba partiu
dos próprios legisladores. É uma história que se
desvenda diariamente e que no mesmo ritmo se reescreve.
07.09.2004.
Bibliografia ALMEIDA, Aluísio de. – Sorocaba Três
séculos de história – Ed. Ottoni – Itu/SP – 2002.
AREIAS,
Almir das. – O que é capoeira – Ed. Brasiliense – SP –
2ª ed. – 1984.
ARAÚJO,
Paulo Coelho de. – Abordagens sócio-antropológicas da
luta/jogo capoeira - A transformação de uma atividade
guerreira numa atividade lúdica – Publismai – 1997.
AZEVEDO,
Artur – O Barão de Pituaçu – Opereta em quatro atos –
1887.
CAVALHEIRO, Carlos Carvalho. – Apontamentos para a
história da capoeira em Sorocaba in: A Nova Democracia
nº 18 – RJ – Maio de 2004.
MORAIS
FILHO, José Alexandre Melo. – Festas e tradições
populares do Brasil – Conselho Editorial do Senado –
Brasília – 2002.
PASTINHA,
Vicente Ferreira. – Capoeira Angola – 2ª ed. – 1968.
PINSKY, Jaime. – A escravidão no Brasil – Ed. Global.
RECIFE – PERNAMBUCO – Capoeiras de ontem, passistas de
hoje. Disponível em:
http://www.recife.pe.gov.br/especiais/brincantes/7b.html.
Acesso em: 25 de jan. 2004.
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