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Política Cultural: Gestão ou Administração?

Carlos Carvalho Cavalheiro[1]

                       O homem é por essência um ser político. Também é verdade que é a única espécie capaz de produzir cultura. Política e cultura, portanto, são características inerentes e indissociáveis no ser humano. Assim, política deve ser entendida como um ato cultural e a cultura como um ato político.

                       Aqui é mister abrir um parêntesis e explicar o que se entende por cultura. No sentido antropológico, e que parece ser a acepção mais ampla e abrangente do termo, cultura seria o conjunto de criações humanas a fim de resolver os problemas e atender aos anseios do homem. Desse modo é lícito, por exemplo, falar da cultura de guerra dos espartanos ou da cultura religiosa dos hindus ou mesmo da cultura filosófica dos atenienses.

                        Entretanto, a pretensão deste texto não é conceituar o termo cultura e sim iniciar uma discussão em torno da melhor forma de se trabalhar a cultura do ponto de vista do Poder Público: se através de administração da cultura ou gestão cultural.

                        A administração da cultura, que é a forma mais comum e disseminada do Poder Público lidar com essa temática, ou fundamentar sua política cultural, é a visão do Estado controlando, produzindo ou patrocinando cultura. Esse modelo, anacrônico e pouco funcional, em que pese a boa vontade de alguns dirigentes culturais, é excludente e elitista. À medida que se tende a patrocinar somente àqueles que se alinham com a política cultural dos representantes do Poder Público, atitude essa esperada da natureza humana, exclui-se do processo de produção cultural uma gama de outros produtores tão bons ou melhores do que os beneficiados. Ademais, o administrador da cultura procura dissimular as falhas de sua política cultural (afinal, omissão também pode ser considerado um ato político) produzindo cultura através da elaboração dos mágicos “calendários” culturais em que se privilegia a promoção de eventos desconexos e descontextualizados, geralmente, e sem atender a uma real necessidade da comunidade. Daí surgirem conceitos equivocados como “levar cultura” ou “ensinar cultura” aos locais descentralizados.

                          Na abertura desta discussão estabeleceu-se que a cultura é indissociável do ser humano. Assim, de uma forma ou de outra, somos todos capazes de produzir e apreciar cultura. Então, não é “levando cultura” que se desenvolve cultura. É, antes, incentivando e criando condições para que ela se desenvolva. O homem produz cultura espontaneamente, se não expõe seu produto é porque lhe faltam condições, até mesmo de conscientização, para reconhecer como produto cultural àquilo que tão naturalmente ele cria.

                         E não bastam Leis de Incentivo à Cultura para preencher esse hiato. Na realidade, se não forem bem geridas, essas leis são ainda mais cruéis na sua forma de excluir: devido à burocracia e, em alguns casos, a indevida apropriação do processo seletivo (que muitas vezes acaba por privilegiar os produtores “conhecidos” e conceituados); deixam sem atendimento os produtores culturais analfabetos e semi-analfabetos ou ainda aqueles que não possuem intimidade com as atividades burocráticas. Desse modo, em geral, os produtores de cultura folclórica, por exemplo, não têm atendidas as suas necessidades. Em outras palavras: a política cultural, nesse modelo, é ineficaz.

                          Por outro lado, o modelo de gestão cultural propõe a criação de condições (estruturais, materiais, financeiras...) para a produção cultural, a todos, com liberdade de crítica e de criação aos produtores culturais e primando pela não exclusão, visando o respeito, a cidadania e a liberdade. Ao Poder Público, como gestor cultural, cabe criar essas condições e direcionar a política cultural para esses fins.

                           O gestor não é apenas o administrador dos recursos financeiros destinados a cultura. Ele se utiliza desse expediente para criar o plano de gestão da cultura. Através desse plano estabelece-se as metas e prioridades para a área cultural, levando em consideração as necessidades da comunidade, seus aspectos históricos e geográficos, sua formação étnica, sua realidade sócio-econômica etc... A seguir, realiza o levantamento das atividades culturais e dos produtores de cultura da comunidade e seus problemas e seus desejos. A partir desse mapeamento, procura criar as condições para a produção cultural inclusiva.

                            Somente à guisa de ponto de partida para discussão mais profunda, podemos citar o caso específico do que ocorre com a manifestação folclórico-cultural do cururu, espécie de repente paulista típico da região do Médio Tietê. Essa forma de repente necessita, basicamente, para sua sobrevivência, de cantadores (os repentistas) e de violeiros específicos conhecedores dessa arte. Como se trata de versos improvisados, sem obedecerem a rígidas regras de números de sílabas poéticas e mesmo de número de versos por estrofe, torna-se dever do violeiro acompanhar o poeta repentista, quase que adivinhando os improvisos deste. Famosos violeiros houve que não soubessem acompanhar o cururu. A despeito disso, hoje há menos de 10% de violeiros em relação ao número de cantadores. Isso significa que num universo estimado de trezentos cantadores há cerca de trinta violeiros. Levando-se em consideração que a abrangência do cururu ultrapassa o número de trinta cidades, tem-se a triste cifra de um violeiro para cada cidade (e algumas nem mesmo possuem os seus). Em breve, se não se pensar numa forma de difundir essa arte da viola cururueira, o próprio repente paulista estará fadado a desaparecer.

                             A um administrador da cultura essa problemática não o aflige. Afinal, as portas de seu gabinete estão abertas para todos e existem diversas leis das quais esses violeiros podem recorrer e se beneficiar para divulgar sua arte. Para o gestor cultural, não basta as portas abertas do gabinete e a criação de leis que não alcançam a todos. O gestor cultural é aquele que sensível a tais realidades, não mede esforços para buscar as condições para que produções culturais como essas possam existir e sobreviver. Essa é fundamentalmente a diferença entre o administrador e o gestor.

08.11.2004.


 

[1] Escritor, poeta e historiador. Licenciado em História pela Uniso.

 

 

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