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ASSIM CAMINHA A NEGRITUDE

Ed Mulato

O Sol, radiante, pastoreava as nuvens no céu, mergulhado na luz que ele mesmo emitia. Parecia feliz, naquele céu de brigadeiro e primaveras, que ele mesmo criava e mantinha. Parecia até conhecer o segredo daquele pouco mais que menino que, embevecido, o admirava, e tinha em si um Sol só seu: estava convocado para a Seleção Brasileira Sub-Vinte!

Convocado! O sonho realizado; verdadeiro encantamento! Nunca pensou que o sonho virasse realidade e que, por seu futebol, chegasse à Seleção; sempre o quis, é verdade: mas, quem não quer? Mas, quantos conseguem? Ele havia conseguido!

Por isso, agora via, em filme imaginado, o início da carreira: o primeiro teste e todos os demais, sempre no time do coração. Lembrava mais, aliás: na verdade, lembrava todo o passado que, assim de longe, parecia feito quase só de alegrias.

Desde sempre jogava futebol: as ruas da favela assistiam todos os dias às peladas que a molecada jogava, descalça, no barro e no chão. Ele, pequeno, sempre por lá.

Isso, até a hora do almoço, hora do sacrifício de todas as mães: acabar com o jogo na hora da escola? Do jogo, tão divertido, para a escola, sempre tão chata? Só com ameaças, tapas e beijos; muito mais tapas que beijos, aliás; nele e no irmão.

Ah, o irmão ...! Há quanto tempo não se viam! Desde o dia da fuga, logo depois da visita à penitenciária; lembrou-se da preocupação, das incertezas, do sufoco causado pelas notícias, sempre desencontradas, nos jornais e na televisão; da perseguição da polícia, dos recapturados, dos feridos, dos mortos. Foi Deus quem impediu que o irmão virasse número, estatística, nada mais; ele desapareceu, simplesmente; não esteve mais em casa: temia que a polícia o procurasse por lá; por isso, não aparecia.

Vez por outra o pai, porteiro de edifício chique na cidade, trazia notícias: o menino tinha aparecido, ou telefonado, ou mandado recado; vez por outra, até dinheiro mandava. Mas não vinha ao barraco. Vez ou outra a mãe saía, plena madrugada, com o pai: o menino vinha cedo ver a mãe por perto do edifício, e lá ia ela até lá; voltava sempre triste, sempre conformada; não comentava nada.

Mas era o irmão, enfim, quem tinha grande parcela de culpa em sua convocação: dele ganhou a primeira chuteira para o primeiro treino. Ah!, como queria, agora, abraçar o irmão e contar a novidade...!!

Porém, o destino tem muitas caras, todas diferentes para cada um, e distribui a sorte como quer e conhece: a ele, que sempre jogou bem futebol, a Seleção; ao irmão, que não conseguiu, nunca, se dar bem com a bola, objeto sempre estranho e hostil a seus pés, que se recusavam a ter qualquer domínio sobre a redonda, chutando de bico bola e canelas, a prisão!

A ele - que sempre tratou a bola com carinho, verdadeira paixão, sendo retribuído por ela, amorosa e amiga, quase um parente, sempre dócil, meio amante, aninhando-se tranqüila em sua perna esquerda, sem desobedecer a qualquer comando - estava aberto o futuro; quanto ao irmão, desiludido de bolas, que havia concordado em vender balas na avenida, e feito amizade fácil com os companheiros de mesma sorte e esquina, estava aberto o Cadeião. Bola por bala, eis a questão.

O menino havia desistido da escola assim que terminou o primeiro grau. Também, para quê? Argumentava: se já não há dinheiro p'ra comprar material hoje, como é que se pagaria qualquer faculdade, se terminado o segundo grau? Se a escola pública não prepara ninguém para o vestibular, e não há como pagar cursinho... Faculdade paga, então, nem pensar. Pois bem: se não é p'ra se formar, p'ra que estudar? - concluía, vitorioso.

Engraçado como o irmão era bom ambulante: fez freguesia, comprava sapato, roupa, correntinha e relógio! Foi ele quem deu a chuteira, o material para a escola... o irmão, enfim, na venda de doces, quase se torna seu pai.

Assim foi a vida, sempre se fingindo tranqüila; até o dia em que o irmão chega correndo, apavorado, um homem correndo atrás. Não o alcançou, é lógico, nem o viu entrar no barraco e sair pela janela, esfumando-se por entre as vielas da vida contida em favelas. O homem gritou, espernou, afirmou que mataria o ladrãozinho, se o encontrasse... por sorte, nada encontrou.

À noite, alguém contou tudo p'ro pai, que não disse nada: simplesmente coçou a cabeça, cansado e bêbado, e foi dormir. Pouco mais de um mês depois, o pai foi chamado à delegacia: o irmão estava lá, detido, com outros colegas de esquina.

Uma bronca do delegado, um papel que o pai, analfabeto, assinou com o dedão, outra bronca em casa, nada assustou ao irmão.

Logo, a Febem; reincidente, não cabia mais a bronca e o papel: veio a internação e a fuga. Muitas outras vezes, a internação e a fuga. Veio a maioridade, veio a prisão: a primeira, seis meses, réu primário, a liberdade; a segunda, por assalto a mão armada e porte de entorpecentes: seis anos de cadeia; e fuga. Não se viram mais.

Quanto a ele, era só futebol. "Um craque", dizia o povo; um craque, já dizia o irmão, ainda não um ladrão. "Um craque", disse o olheiro, “seu” Luís, que o descobriu jogando na várzea.

“Seu” Luís...!!! Todo domingo ali, distraído, vendo o jogo do time do bairro; na verdade, vinha só ver o moleque da ponta-esquerda, aquele da perna ágil e criativa, que fazia com a bola o que a cabeça nem tinha pensado: o drible era sempre repentino, a jogada aplaudida, o gol, vez por outra.

“Seu” Luís ali, observando e pensando, e ninguém sabia: tomava sua cerveja, não dizia nada. Terminado o jogo, sumia, ninguém sabia ao certo quem era ele. Um torcedor, acabou-se, e é só.

Até que um dia esse homem, no fim do jogo, saiu da rotina: ao invés de sumir, chegou-se como quem não quer nada, ainda no campo, e começou uma conversa mole, um cerca-Lourenço, falando que seu jogo era muito bom, o domínio de bola impecável, etc. e tal. Por fim, deu-lhe um cartão:

- Quarta-feira, nove e meia, neste endereço; chega lá, entrega o cartão ao porteiro, manda me chamar.

- Quarta-feira? ... e se eu tiver prova? E se eu não puder?

A mãe fazia questão da escola: "sem estudo, você não é nada" - dizia ela - "ou vai ser um preso fujão, igual seu irmão". Ele abaixava a cabeça, obedecia: sabia que tinha responsabilidades quanto ao futuro dos pais e não podia dar, a eles, novos motivos de preocupação.

- Qualquer quarta-feira, neste horário; mas só até o fim do mês que vem!

O homem foi embora, sem qualquer explicação.

... e se não pudesse ir, se tivesse prova? A mãe tinha razão: o pai, filho de nordestinos, era analfabeto e  nunca pode ser mais que simples porteiro, sem condições de sustentar a família.

- Lugar de homem é no trabalho! Escola não é lugar de cabra macho! sempre dissera o avô a seu pai.

Ali estava o resultado: por isso, a favela. Por isso São Paulo, periferia, favela. Favela sem morro, favela sem dono, sem charme, rasteira, sem Rio de Janeiro, sem proteção. Sem traficante importante, sem dono, sem organização. Sem nome em jornal. Favela sem graça, pé-de-chinelo, favela ralé... Favela à-toa, sem nada; simplesmente, favela.

Do pai analfabeto, o pensamento passou para a mãe, que lia um pouco, mas escrevia mal, e era esta a sua grande tristeza: por isso, lia o jornal todos os dias.

Lia, de sua forma especial: vagarosa, mal soletrando, começava sempre da última página, parecia um japonês... Mas aquela mulata escura, semi-analfabeta, lá sabia que japonês lê assim? Certamente que não! Por isso a mãe não podia ser nada mais que doméstica, diarista, cozinheira, nada mais, nada além.

Voltou à realidade. Estava só, dependia de si: era seu futebol e mais nada. De que adianta a escola para o futebol? - dizia o irmão. De que adianta pai, mãe, irmão, para o futebol? Se bem que o irmão deveria estar ali: era o que seu coração lhe pedia.

Porém, já o Sol buscava cama, estirando nuvens, como lençóis, sobre o céu; a Lua, atrevida, adiantando seu turno em meio ao verão, não vinha só: como sempre, trazia Dalva, a dedicada e infalível dama de companhia, consigo.

 Ele de nada sabia mas, exatamente naquele momento, na delegacia, o detetive Barros, que se encontrava ao mesmo tempo eufórico e desconfiado, preparava a batida policial: será que tinha, mesmo, encontrado o fio da meada?

Afinal, eram quase dois anos atrás da quadrilha de assaltantes que, no primeiro momento, pareceu formada por amadores: deixavam pistas - documentos, máscaras caídas... às vezes perdiam dinheiro; o carro utilizado era sempre roubado um pouco antes do assalto, e abandonado logo a seguir. Entretanto, tais pistas eram invariavelmente falsas: "plantadas" pelos próprios assaltantes, enganavam à polícia.

De início, agiam sempre na Zona Sul: investigações concentradas em Santo Amaro. Depois, Zona Leste: polícia em Guaianazes. Daí a ação passou para o Morumbi...

Sempre a mesma quadrilha, com certeza: quatro elementos, um mulato alto e forte comandando a ação, sempre pistas, sempre falsas.

Agora, a bala retirada do ombro do vigia bancário - pela primeira vez haviam ferido alguém - conferia com a arma apreendida no desmonte de um ponto de venda de drogas, e que estava nas mãos de um moleque - pouco mais ou menos quinze anos - que dizia tê-la achado no lixo.

- Mentira! - gritou Barros, que já estava perdendo a paciência com a esperta quadrilha - quem são seus comparsas?

O moleque negou - sou de menor! - foi a única resposta. Encaminhado à Febem, estava lá sabe Deus até quando. Até à próxima fuga, certamente.

Se pudesse, uns tapas no moleque e arrancava a verdade; mas, daí a enfrentar sindicâncias, Juizado da Infância, afastamentos e, quem sabe, até a perda do cargo, vai distância...

Mas Barros sabia que estava perto, e ia se vingar da quadrilha. Detetive antigo, com excelente folha de serviços, não perdoava bandido. Especialmente, os negros; ele, também negro, não admitia que "sujassem" sua raça:

- Depois, dizem que é racismo, que branco não tem razão! Por que não vai estudar, não vai trabalhar? Vai ser bandido, que é fácil, não é? Comigo não - dizia sempre.

Afinal, Barros também era cria de favela; adolescente, havia praticado pequenos furtos, até assaltado já tinha. Aí, na delegacia, o pai lhe dera um belo par de cascudos, e um emprego de entregador na mercearia vizinha. Barros tinha medo do pai. Mais medo que respeito, já que o homem, quando queria, sabia ser violento. Quando bêbado, então... Pensou em fugir, se embrenhar pelo mundo... e viver de quê?

Resolveu fazer o exame para admissão na polícia. Resolveu, não: foi obrigado pelo pai! Mas, quando se viu pela primeira vez armado e documentado, sentiu o gosto do poder.

Seus primeiros trabalhos de rua lhe apresentaram o imenso prazer de dar uns tapas na cara de moleques sem documentos; era quase um orgasmo quando, arma em punho, gritava: pára, senão eu atiro! Encosta no muro! Mãos na parede! Pernas separadas! - enfiava com gosto a mão nos fundilhos do vagabundo, chutava os calcanhares p'ros lados, e não podia faltar o tapa na nuca.

O traquejo o havia cansado da violência: prestou concurso para detetive. Aprovado, fazia absoluta questão de manter a folha limpa: sentia-se no céu quando recebia qualquer elogio.

Não que recusasse propinas, uma aqui, outra acolá: o salário tão baixo, a família tão grande... ninguém é de ferro! - justificava-se para si mesmo, nos primeiros momentos; depois, acostumado, passou a achar que bandido tinha mesmo é que pagar o pedágio, se não quisesse morrer. Afinal, ele era autoridade; os outros, bandidos, ralé.

Foi à Febem; o diretor concordou em apertar o moleque; alguns tapas depois, a verdade: a arma tinha sido comprada em uma favela.

O Sol, bocejando, vestia o pijama de nuvens enquanto deitava, tranqüilo, no horizonte que ele pintava de roxo e laranja; a Lua feliz, toda cheia, disfarçava o esforço que fazia para substituir a luz do Sol pela sua. Coitada! Preocupava-se à toa, pois sua luz é muito mais linda, muito mais pura, muito melhor; a seu lado, um pouco afastada, ainda solitária, a Estrela D’Alva conduzia a noite pela mão: amorosa, cuidadosa, a trazia lenta e calmamente, pois ela é sempre criança, e merece todo o cuidado que só a uma estrela é dado lhe dar.

O menino, chegando à favela, viu que a solidão da Lua não era total, pois D’Alva a espantava; assim também ele, que se via sempre acompanhado da habilidosa perna esquerda, onde repousava seu futuro.

Sim; ali estava, esperando ser retirado, todo o seu sonho: no primeiro salário, a casa da mãe, fora da favela, por perto o metrô - assim, o pai não precisaria mais acordar às cinco da manhã, chegando só às dez da noite, sempre depois de passar pelo bar, jogando conversa p'ra fora e pinga p'ra dentro; a mãe, que sempre chegava depois das oito da noite, não precisaria mais acordar antes do pai para fazer o café; ele mesmo poderia descansar mais antes do treino, jogando muito mais e melhor.

A casa tinha que ter, pelo menos, dois quartos: um para o pai e a mãe, outro p’ra ele; melhor um sobrado, pensou - era chato fingir que estava dormindo nos momentos de intimidade do casal...

Também tinha que ter banheiro, esgoto e cozinha: assim, poderiam dormir sem o cheiro acre de comida e estrume, que atraia ratos e baratas todas as noites.

Bairro bom, com certeza, farmácia e mercado por perto, evitando que a mãe, como agora, tivesse que sair à noite, às vezes no escuro, comprando uns poucos ovos – quando o dinheiro dava – que se fingiam misturas na janta.

Mas, agora, tudo mudava: estava convocado para a Seleção Brasileira, ia viajar, ganhar dinheiro, ia assinar um contrato...

O contrato! Será que o pai havia trazido o bendito papel, verdadeira alforria, e já se podia assiná-lo? “Seu” Luís vinha insistindo - "sem o contrato assinado, como posso ser seu procurador?"

Aliás, o que é, mesmo, procurador? Mas o pai havia dito, na véspera, que ainda não tinha pego o papel com o Dr. Felipe, o advogado do terceiro andar, e Dr. Felipe é quem ia dizer se o contrato era bom, porque o Dr. Felipe era bom: o fogão, tinha sido dado por ele; muitas vezes o pai chegava com roupas e sapatos – usados, é verdade – que o Dr. Felipe, dizendo que ia doar, dava a seu pai. Dr. Felipe era bom, mas era ocupado. O pai devia estar com vergonha de perguntar sobre o contrato...

Assim pensando, chegou à favela. O Sol se punha sem querer se por, mas a natureza não perdoa, e ele ia dormir. A Lua já tomava seu lugar, iluminando, meio amarela, o vermelho-laranja do céu.

Foi nessa luz que viu o barraco, prendendo a respiração: queria chegar em casa fingindo de triste; queria que a mãe e o pai, quando chegassem em casa, ficassem preocupados, pensando que alguma coisa não tivesse dado certo.

Parou, ensaiando a cara adequada. Queria causar muita surpresa, ver o brilho nos olhos dos pais quando contasse a novidade. Queria que eles não acreditassem, depois acreditassem, depois o abraçassem, agradecendo a Deus e a seus orixás. Queria alegria e festa, não queria mais paz.

Foi quando viu o vulto pulando na rua pela janela do barraco, e pensou que era ladrão; mas, não: logo reconheceu o irmão, sorrateiro, agachado; olhou a esquina, depois correu; correu certeiro, conhecia todos os cantos daquela favela, e todos os caminhos da vida; virou a esquina, ganhou o mundo no mato, desfez-se na noite. Sumiu.

Então, ouviu o primeiro tiro: no susto, não reconheceu o barulho, simplesmente parou. O irmão, sumido no mato; ele, sumindo-se em si.

... ouviu o primeiro grito: olha ele ali!

Era um Barros triunfante que gritava ordens de rei: descoberto o mentor da esperta quadrilha, vinha prender o ardiloso assaltante.

- Pega o homem! Cerca pela esquerda!

Não ouviu o segundo tiro: simplesmente sentiu o zunido ali perto do ouvido; percebeu que era tiro, já tentando correr.

Não correu; caiu, sentindo a virilha estraçalhada; já quase desmaiando, percebeu: pela ferida formada na perna treinada, todo o seu sonho escapava; nebulosa, viu esfumar-se no sangue a Seleção; frio e quieto, lá se foi o contrato... depois a casa... ... o telefone... ... ... todos os projetos, todo o futuro, tudo o mais.

Desmaiou, por fim, ao ver que o sangue, da perna jorrando, molhava, chorando, a inútil chuteira caída no chão.

05.out.01

 
 
 
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