Percebeu, pelo olhar maroto, que outra vez ela
vinha, doce, aninhar-se a seus pés. Parou
simplesmente; esperou; ela, se quisesse vir,
viria; e só.
Adivinhou, mais do que sentiu, o conhecido
frisson que se achegava acarinhando suas
pernas, já tão cansadas de tanto correr.
.. e
ela achegou-se; como sempre mansa, com o ar
maroto de quem bem sabe o que é querer bem. Ele,
nem sorrir, sorriu: sabia que ela, que somente
ela, dali em diante, tudo comandaria, dirigindo
seus passos pelos estranhos e tortos caminhos
que levam ao destino que buscou na vida.
Conformou-se, e foi feliz. Sim, estava feliz.
Serelepe, ela pulou; de seu pé direito deu um
salto lindo, como fosse uma borboleta leve;
raspando quase o cabelo adversário, conduziu-lhe
o corpo adiante, sempre adiante, sempre
adiante...
Então, mansa como um gato, escorregou-se pela
ponta da chuteira, desvendando caminhos novos
pelo labirinto do entre-pernas do primeiro que
se apresentou... e ele a viu, carente, já parada
ali, na área. Marota, ela o chamou para
travessuras novas - embora antes já vividas.
Como
nada ele lhe negava, simplesmente a empurrou
para o canto que ela mesma havia, de antemão,
escolhido; saltitante, ela correu, rente ao
chão, para aninhar-se em paz nos braços de sua
amiga rede que, irônica como sempre, soltou seu
inconfundível e longo chuááá quando,
feliz, a acolheu em suas malhas mansas.
Sentiu então, caindo na área, que novo e
estranho frisson explodia em seu pé,
subindo célere por toda a sua perna de apoio...
e percebeu, junto ao povo que lotava o estádio,
que toda a alegria do mundo partia dele; e dele
só: era de seu pé que partia a luz do Sol, que
ilumina o mundo.
Ainda em meio ao grito longo da galera,
enlouquecida numa estranha dança nova, quase
tribal, distinguiu o grito doce, manso, muito
amado:
Leve, o som se amansa; meio cansado, baixa o
tom; é quase se arrastando, em sussurros, que
escorrega e continua:
- Filho,
filho... - sente o beijo manso; entrega-se ao
cafuné gostoso...
- Filho.
É seu café...!
Então, entre as últimas sombras do sono insano,
percebe o esforço imenso que fazia a mãe, ao
esconder, à força, atrás do sorriso amarelado e
torto, a tristeza espalhada no rosto, que se
disfarçava, entre lágrimas, no brilho opaco do
olhar perdido.
...
e notou, dissolvido ali, no gesso que lhe fixava
a perna e o tornozelo partido, misturando-se à
fumaça que subia do copo ali ao lado... seu
sonho de bola... que também se esfumava em
nada... e que naquele exato momento, então,
acabou...!
julho, 2002