Eram
nove horas da manhã daquele dia enfarruscado
quando ele se levantou. Malgrado as nuvens que
insistiam em passear, em rebanho, pelo pasto
azul do céu, o Sol prometia iluminar o dia com
aquele brilho intenso, às vezes irritante, que
só o outono tem.
Tão
rápido quanto lhe permitiam as pernas
entorpecidas, foi ao banheiro para a higiene
pessoal. As nuvens de final de sono, que
insistiam em empanar seus olhos, logo se
dissolveram na chuva artificial da torneira do
banheiro.
Olhou-se ao espelho: se as nuvens do sono haviam
se ausentado, as da velhice insistiam em lhe
cobrir os olhos, dissimulando a neblinada imagem
real que, mal enxergada, lhe permitia supor-se
com o mesmo rosto que exibia quarenta, cinqüenta
– cinqüenta? – anos atrás.
Nove
e cinco da manhã: recusou-se a ver as rugas que
lhe distorciam os contornos originais do rosto
quando moço. Bem vinda, vista cansada – pensou -
sempre evita o desgosto de alguém se ver como
realmente é...!!
Enfim, feita a higiene pessoal - e intestinal -,
dirigiu-se - passos firmes sobre pernas
trôpegas, chinelos velhos protegendo os pés sem
calos, comprimidos brancos na mão longa - para a
cozinha, onde tomava, regularmente, um copo com
água e um ou dois dedos de café sem nada.
Depois, o cigarro.
-
Larga o cigarro, pai – sempre lhe repetia, como
um cuco bem ajustado, a filha mais velha – você
ainda morre de enfarte – completava, resumindo o
medo.
Ora,
por que parar de fumar? Por que deixar o último
prazer que lhe restava? Por que viver mais se,
naquele exato dia, exatamente às dez horas, que
céleres se aproximavam, completaria cem anos?
Por que viver mais? Que vale a vida sem nenhum
prazer?
Eram
nove e vinte da manhã. Estranhou a porta
fechada. Estranhou mais, aliás, não encontrar
ninguém em casa. Logo no seu aniversário? Logo
àquelas horas da manhã?
Engoliu a seco a lágrima incontida, que
percorreu, rebelde e lenta, a ruga funda que
riscava o rosto velho, desde o canto externo de
seu olho esquerdo ao canto esquerdo de sua boca
murcha; ao empurrar a porta da cozinha, porém,
deu de cara com um quase susto: a quase festa
que os filhos lhe haviam preparado, quase em
segredo.
-
Parabéns p'ra você, nesta data querida... !
Soaram, pelas paredes da cozinha envelhecida, as
vozes senis de seus filhos, desafinando a letra,
quase em samba enredo no batuque dos tapinhas
abraçados em suas costas; o coração, velho surdo
mestre, fazia involuntária marcação.
Sorriu, mesmo desenxabido: sabia, desde sempre,
que aquele seria, sim, um dia especial. Não
porque completava seus cem anos, não só por
isso: havia mais; mas só ele sabia que havia.
Foi
quando os olhos baços se cruzaram, quase
involuntários, com o olhar manso e terno que
habitava o rosto sempre novo do filho mais
velho, cuja cumplicidade escondia, em seu brilho
eterno, segredos que nunca existiram entre os
dois. A perna bamba bambeou:
- Calma,
meninas: vocês nunca se deram bem, por que vão
brigar agora? – brincou o menino, sempre
disposto a evitar confusões.
- Deixa
que eu pego o bolo! – quase gritou em seguida,
assustado, quando viu que a irmã do meio, sempre
desastrada, quase derruba tudo, pondo tudo a
perder; a cumplicidade que partiu dos olhos do
filho manso, reencontrou o costumeiro eco nos
olhos calmos do pai.
Sempre é estranho o amor de pai e filho, pensou
o velho: é cúmplice, é único, mas é comum!
Então, sorriu: nada muda na vida, exceto a idade
– decretou, em vã filosofia.
Olhou o filho: o cabelo, branco, ralo,
encaracolado; o porte ainda altivo; o bigode
parco, imperceptível, que sempre o acompanhou, e
que só se fazia notar quando raspado, deixando
estranho o rosto tão amado e conhecido.
Já
além de nove meia, deixou o olhar perder-se no
passeio pelas filhas, eternas meninas, que o
ladeavam na mesa farta e rara do café conjunto:
estavam também velhas, com mais de sessenta anos
– sessenta anos! – e não haviam aprendido,
ainda, de fato, a viver como irmãs. Socorriam-se
quando necessário, é verdade. Sorriam-se quando
necessário, é verdade. Mas discutiam sempre, por
qualquer coisa à toa, talvez pelo vício de
discutir. Rusgas e rugas. Nada mais.
Mais
cinco minutos e, quase em comportada algazarra,
conversavam todos sobre futilidades comuns; ele
comentou que se dava por feliz: ainda lúcido,
via-se poupado pelas doenças. Nada sabia de
doutores como Parkinson e Alzheimer, mesmo
naquela idade incomum.
Nada
de artrites, reumatismos, achaques que tais. A
memória, tudo bem, obrigado - até o ponto em que
um século de recordações se permite arquivar...
Sorriu feliz, meio matreiro, ao comentar que,
além disso, nem mesmo as doenças que adoram
escravodescendentes, como eles, lhe deram a
honra da visita indesejada: nada de anemia
falciforme entre eles; o diabetes não o havia
alcançado, não havia causado estragos a ninguém
naquela família; só a velha pressão alta,
facilmente controlada, exigia algum cuidado. De
mais grave, somente a operação de hérnia, mas
isso há tantos anos, há tanto tempo... era um
bebê quando operado! Sequer a febre reumática
havia deixado qualquer seqüela além da velha
insuficiência mitral, tão discreta e
envergonhada que mal se mostrava, aos sopros, ao
cardiologista mais atento.
Riam
das reminiscências, às nove e quarenta e cinco,
quando o neto chegou, máquina fotográfica a
tiracolo; já tinha ele cinqüenta e cinco anos,
mas o espírito mal tinha vinte, se tanto. Já
chegou chamando a mãe de velha, o velho de meu
pai, avançando sobre o bolo mal tocado,
derramando café sobre a alquebrada toalha
branca, na mesa...
Depois, juntou a família e juntou-se a ela para
o retrato de revelação instantânea,
necessariamente mal tirado, enjaulando ali
sorrisos conjuntos, que não mais se repetiriam.
Vendo a foto, riram sorrateiros sobre as
próprias caras velhas.
Ele,
centenário e emocionado, deitou a cabeça sobre
os braços, cruzados sobre a mesa.
- Tudo
bem, pai? - perguntou o filho.
- Tudo.
Só quero pensar um pouco.
As
filhas, caladas o tanto que se calam as
mulheres, começaram a tirar a louça da mesa; o
neto, bulhento, caminhou para o quintal,
procurando pelo cachorro e por jabuticabas que,
acaso encontradas na velha árvore de quase
cinqüenta anos, que o velho havia plantado para
ele, seriam levadas para a irmã que, já além dos
quarenta, ainda gostava de coisas de criança,
com as quais se distraia das grandes obrigações
que o trato dos cinco filhos - especialmente os
dois últimos, recém adolescentes - ainda lhe
obrigavam a ter.
Quanto a ele, olhos fechados, somente esperou;
estava próxima a hora: ansioso mas calmo,
simplesmente aguardava.
Olhos fechados; deixou que a vida se
apresentasse, em reprise de cinema gravada em
fita de baixa qualidade. Lembrou da juventude,
quando se via como herói da humanidade, capaz de
modificar o mundo a seu modo; ser superior,
divino, se imaginava. Planos frustrados: sequer
manteve a primeira família, dissolvida
recém-feita nas loucuras da juventude mal
abortada.
Recuou fronteiras, então; encolheu limites, mas
resolveu seguir adiante; não mais herói do
mundo, apenas condutor da própria vida. Sabia-se
destinado a grandes movimentos, cavalo indomável
de seu próprio jogo de xadrez; sabia-se capaz de
conquistar qualquer rainha quando quisesse;
senhor do tabuleiro, derrubaria qualquer rei a
qualquer momento, vencendo qualquer torre e
contrariando qualquer bispo, quer branco, quer
preto, quer de qualquer outra cor.
Ainda via o mundo inerte a seus pés quando
percebeu, num susto, que mal havia conseguido a
própria casa – quase perdida em leilão por falta
de pagamento!
Só
então passou a vislumbrar realidades. Viu-se de
tamanho mais ou menos são, quase comum,
semicompatível com o que realmente era. Afinal,
já lá se ia longe a juventude e, com ela, os
sonhos de grandeza que, pequenos, mal se
realizaram.
Entregou-se leve ao turbilhão da vida, à voz do
vento do destino - ora à direita, ora à
esquerda, ora acima, ora abaixo - que o levou
por onde quis, aos trambolhões, mas sem sair de
qualquer lugar.
Então, parou. Não lutou mais. Não desejou mais.
Nada além de ver a vida, e de viver só por ela.
Assim fez, assim se fez, assim se deu por
satisfeito. Não por vencido.
O
pensamento voltou à mesa do café, onde se deixou
acalmar. Percebeu que sua vida toda estava
resumida não no que pensou ser, ou quis ser,
mas, sim, no que lhe deixaram ser.
Nunca havia, de fato, exercido o livre arbítrio,
tão decantado: todo o seu passado nada mais
representava que o amontoado de decisões tomadas
ao sabor de cada momento, de cada circunstância,
acertadamente ou não.
Ele
mesmo não era ele só; não era só: era, sim, o
ajuntamento de pequenos pedaços de todos que
haviam, em algum momento, de alguma forma,
penetrado em sua vida, e por ele haviam decidido
qualquer coisa – ou lhe cobrado qualquer
decisão.
Enfim: sua personalidade não era sua, mas, sim,
o caleidoscópio louco, prisão de todos os cacos
de luzes que atravessaram por seu prisma, às
vezes distorcido, nem sempre puro, nem sempre
nu.
Sem
nenhuma dor, sorriso, lágrima, sentiu que a hora
era chegada: simplesmente deixou que o corpo,
aos poucos, se entorpecesse, no momento exato em
que se viu invadido por estranha alegria,
percebendo, por trás do umbigo murcho, o lampejo
que crescia transbordando luz, e manso se
expandia, buscando a expansão final do universo;
nada fez: deixou-se desprender de tudo, molambo
solto, desmanchadamente inerte, a vista cega
presa no umbigo murcho.
Nada
mais ouvia quando o filho, um tanto apreensivo,
voltou a perguntar, mão doce e terna em seu
ombro mole:
Outono, dez horas da manhã, doze de maio: data e
hora de seu óbito; e de seu nascimento. Era isto
o que ele sabia: assim que seu século estivesse
cumprido, todas as dores de seu ciclo estariam
consumidas.
Dez
horas da manhã: livre, o centenário espírito
fluiu ao encontro da energia que o gerou,
procurando encontrar, no futuro, coisas mais
úteis que fazer além de desgastar-se, perdido e
preso noutro corpo quase inútil, por outro longo
século vazio, quase nada produzindo.
Naquele instante, na velha jabuticabeira, uma só
folha amarelada iluminou-se, liberando toda a
luz brilhante acumulada ao longo de tantos
outonos; depois, desprendeu-se, volteando velhas
valsas mansas rumo ao chão.